Quando escrevi minha primeira carta a um irmão ancião[1] o contexto de Romanos 1 me deixava intrigado. Eu questionava o irmão, às lagrimas, sobre as desvirtudes descritas nesse capítulo da carta de Paulo, tradicionalmente relacionado à homossexualidade, e que eu sabia não fazer parte do meu caráter, embora fosse gay.
De fato, esse ainda parece ser o texto bíblico[2] que mais dá munição tanto aos discursos homofóbicos dos que se dizem cristãos como para a tentação do blá-blá-blá-diabólico que diz: Você sabe que Deus não te ama, e que Deus te despreza, e que você é uma abominação?
Eu nunca poderei dizer a ninguém que Deus tolera uma relação homossexual. Jamais. Igualmente nunca poderei afirmar que Ele não a tolere. Na verdade, os que estão convictos quanto ao posicionamento de Deus em relação à sexualidade natural de suas criaturas, baseiam a aversão à homossexualidade em poucos textos bíblicos: Gênesis 19, Levíticos 1 e 20, Romanos 1. Além desses, há os versos isolados de 1 Coríntios 6:10 e 1 Timóteo 1:10 também utilizados para matar a fé e a alma de homossexuais cristãos.
Contudo, eu apresento outros dois contextos que escapam dos que não querem homossexuais em suas igrejas e, muito menos, no seu céu: Deuteronômio 23:17-18 e 1 Reis 14:24; 15:12; 22:47.
Na versão da Bíblia utilizada na Congregação Cristã no Brasil[3],nos versos citados de Deuteronômio, lemos:
Não trarás salário de rameira dentre as filhas de Israel, nem haverá sodomita dentre os filhos de Israel, não trarás salário de rameira nem preço de cão à casa do Senhor teu Deus por qualquer voto: porque ambos são igualmente abominação ao Senhor teu Deus.
Rameira é prostituta e sodomita ou cão também deveriam ser entendidos como prostitutos. Não só isso, prostitutos cultuais, como traduzem outras versões da Bíblia[4]. O dinheiro obtido por meio das rameiras ou dos sodomitas não deveria entrar no templo do Senhor. Se sodomita e homossexual são de fato sinônimos, como muitos querem afirmar, gays, não deem coletas!
Exagero à parte, convido a ler o contexto que mencionei de 1 Reis 14. Note que no verso 23 desse capítulo descreve-se a idolatria de Israel (altos, estátuas e imagens do bosque) e, ainda, que haviam rapazes escandalosos na terra. Esse termo – rapazes escandalosos –, por um descuido dos homofóbicos de língua portuguesa[5], não foi traduzido como sodomitas – poderia ser mais um verso para decorarem e matarem os gays com suas duras palavras –, entretanto tem o mesmo sentido de Deuteronômio 23: prostitutos cultuais[6]. O contexto de 1 Reis pode ajudar a perceber essa relação entre sexo e idolatria, o sexo dos cultos pagãos proibido em Deuteronômio 23 e praticado pelos povos anteriores a Moisés, como o escriba de 1 Reis 14 relata: “[havia idolatria em Israel, inclusive o sexo cultual] conforme a todas as abominações das nações que o Senhor tinha expulsado de diante de Israel”.
Em Romanos, o texto utilizado para condenar os homossexuais está concentrado[7] a partir do verso 18 do capítulo 1. Peço que releia o capítulo 1 e 2 de Romanos antes de seguir com a leitura deste meu texto.
Note que o contexto de tal epístola trata da idolatria e depravação daqueles que tendo conhecido a Deus não o glorificaram como Deus, tão pouco Lhe deram graças e, ainda, mudaram a glória de Deus reduzindo-O à semelhança da imagem de homem terreno ou de aves e outros animais. Alguns romanos crentes (eles conheceram a glória de Deus!) retornaram ao ritual pagão, servindo mais à criatura e à mentira e mitologias do que ao Deus da verdade e justiça. Deus, que já havia se revelado a eles, não os impediu que retornassem à mentira, ao sexo cultual[8].
Os versos 25 e 27 parecem fazer menção a homens e mulheres heterossexuais que perverteram sua natureza, deixando o uso natural[9] que tinham (a mulher do homem, e vice-versa) para se inflamar em sua sensualidade.
Observe que o verso 28 afirma que essas pessoas não se importaram em ter conhecimento de Deus. Praticavam toda sorte de sexo – inclusive aquele que não lhes era natural , isto é, com pessoas de mesmo sexo – e pouco se importavam com a moralidade cristã, com o sexo por afeto, com respeito e dentro de uma relação emocionalmente saudável. Eles promoviam orgias em louvor aos deuses pagãos ou para alimentar a sua própria perversidade, a ponto de mudar sua natureza heterossexual no culto à carnalidade.
Na sequência, Paulo descreve também o caráter dessas pessoas e demonstra o quanto romperam com a doutrina cristã – o amor fraternal, ao qual devem ter se sujeitado em algum momento –, pois não se importaram com ela, já que não se importaram em conhecer o Deus da verdade e de amor e chegaram ao ponto de se tornarem homicidas, infiéis, cheios de contenda e de maldade, inventores de males e, destaco, sem afeição natural, irreconciliáveis e sem misericórdia.
Romanos 1 nos adverte que dos céus se manifesta a ira de Deus sobre qualquer impiedade e injustiça dos homens que detêm a verdade em injustiça. Ora, se sufocar o desejo de servir a Deus e a fé de um gay cristão for um ato de piedade dos que se dizem cristãos, e se dizer que um gay não pode ser cristão não for uma deturpação da suprema verdade – que é: Cristo salva e ama a todos que se achegam a ele – em injustiça, precisaremos redefinir o significado que atribuímos à longanimidade, à benignidade, à afeição fraternal, à misericórdia e a todos os demais frutos do Espírito.
Pode ser que não estejamos voltados à idolatria ao ponto de construir estátuas ou altos do bosque, porém se a imagem que construímos de Deus é a do Deus que não salva ou não ama o gay abatido que vive O buscando, chorando e implorando por uma “cura” inalcançável, ou a do Deus que ouve a oração desses homossexuais que tanto já desejaram ser cristãos livres dessa “abominação” e não os “cura”, ou a do Deus que, podendo, não os livra desse “espírito diabólico”, creio que estamos reduzindo o Deus verdadeiro à imagem do homem corruptível, sem afeição e sem misericórdia, assim como os romanos o fizeram.
Não, não é o Deus da verdade que não ama o homossexual!
Aos gays cristãos recomendo que se revistam de justiça e de piedade, virtudes divinas, e que vivam de fé em fé crescendo no conhecimento de Deus que os livra da insanidade dos homens que se julgam sábios, mas que se tornaram loucos.

[1] Texto 2 di blog
[2] Eu já escrevi de maneira superficial o quanto Levíticos não deveria ser posto em prática na atualidade (Texto 15 do meu blog) e como Sodoma e Gomorra não foram destruídas por causa da homossexualidade (Texto 12 do meu blog). Porém alguns entram em contato e me questionam sobre Romanos 1.
[3] João Ferreira de Almeida, Edição Revista e Corrigida na grafia simplificada
[4] Nova Versão Internacional: Nenhum israelita, homem ou mulher, poderá tornar-se prostituto cultual, não tragam ao santuário do Senhor, o seu Deus, os ganhos de uma prostituta ou de um prostituto…
Nova Tradução na Linguagem de Hoje: Nenhum israelita, mulher ou homem, praticará a prostituição nos templos pagãos…
[5] Na versão inglesa King James lê-se sodomites, e na versão da Tradução Brasileira, sodomitas.
[7] Originalmente a Bíblia não era dividida em versos ou capítulos, ou trechos com subtítulos como temos hoje. O livro de Romanos, por exemplo, é uma carta que deveria ser lida do começo ao fim, como um texto único. Também é importante saber que os títulos dados às seções, que dividem um capítulo, não constam no original e foram elaborados segundo o entendimento de quem leu aquele trecho (há, inclusive, títulos incoerentes como o de Lucas 13:10 que diz “Cura da mulher paralítica” que, na verdade, apenas andava encurvada como explica o texto bíblico). Na Congregação há o ensinamento dado ao Ministério de que não seja lido apenas um verso para exortar a Palavra, mas sim todo um capítulo, afinal, texto fora de contexto é pretexto. No subtítulo de Romanos 1:18 lê-se “a deturpação dos gentios”, porém pelo contexto pode-se compreender que se trata da deturpação daqueles que uma vez foram cristãos e se voltaram às práticas pagãs.
[9] Se esse “uso natural” se referir ao sexo para procriação, é preciso reorientar muitos casais heterossexuais cristãos quanto à prática do coito anal dentro do seu legítimo casamento heterossexual. Eu não imaginava essa prática entre casais heterossexuais, contudo, ultimamente tenho ouvido diversos relatos havendo inclusive alguns cristãos tradicionais que o consideram como natural (apenas entre o homem e a mulher, já que lhes convém!). Se o “uso natural” se referir ao sexo original, para procriação, é necessário esclarecer aos casais héteros que a boca naturalmente é um órgão do sistema digestivo e, por isso, o sexo oral também não é natural. Eu não conseguia dar crédito a relatos que que diziam que heterossexuais se “aproveitam” da situação fragilizada de alguns jovens homossexuais e mantêm alguma relação com esses, porém os relatos são tão recorrentes que, talvez, seja a essa perversão da natureza (um heterossexual buscar prazer com alguém do mesmo sexo) que a Palavra condene, já que é um sexo por diversão ou por curiosidade e que, na maioria das vezes, o apenas o homossexual é escrachado após a relação. Ainda, é preciso considerar que é uma brutalidade um homossexual ser orientado a reverter sua natureza homossexual. Se eu sendo gay mantiver uma relação de “fachada” apenas para me enquadrar na heteronormatividade eu não estaria indo contra a minha natureza? Em se tratando de sexo, qual é o “uso natural” para um homossexual? A moralidade não deveria, jamais, tornar-se hipocrisia. Eu também sou cristão, sim.