Como escrevi nos dois textos anteriores a este, em 2018 me apresentei pessoalmente e entreguei uma carta [1] a um dos anciães mais “antigos” da capital de São Paulo. Eu tentei expor que alguns discursos pregados na igreja produziam grandes ruínas materiais e espirituais: da morte do corpo, por meio de suicídio, ou da alma, por meio de um afastamento completo da fé.
Novamente, e talvez tangenciando um pouco menos, em 2019 enviei outra carta [2], pouco antes da 84ª Reunião Geral de Ensinamentos (RGE) [3].
É claro que eu sabia que essas minhas manifestações não mudariam nada dentro da igreja, e que os irmãos continuariam pensando e agindo como sempre. No entanto, acredito que devido ao contexto geral do nosso país, de discriminação e de preconceito sancionados no imaginário coletivo, a RGE produziu um tópico de ensinamento, que transcrevo a seguir.
10. Casamento de pessoas do mesmo sexo
O ministério esclarece à irmandade que devemos respeitar os direitos das pessoas referente à união conjugal entre pessoas do mesmo sexo pois, segundo a Constituição do Brasil, são livres para optarem sobre o modo de regerem suas vidas, em todos os aspectos, quer familiar, social, sentimental e religioso. Devemos permanecer fiéis à Palavra de Deus que condena a idolatria e depravação das pessoas, conforme escrito em Rom 1:18 ao 32. São condenados também aqueles que conhecem a justiça de Deus, mas consentem com o pecado, participando de tais atos, inclusive em festas relativas a essas uniões.
Eu realmente não sei o contexto e motivação para a produção deste tópico. Talvez um registro de que a instituição não comunga, ao menos em teoria, com o desrespeito às pessoas ou, talvez, a quantidade de casamentos homoafetivos tenha aumentado entre a mocidade (amém! rs), ou… não sei.
Sobre o tópico em si, primeiro, é nítido que, embora deve ter sido lido e editado várias vezes, foi feito sem pensar nos próprios princípios cristãos, afinal, precisariam de que a Constituição determinasse que homossexuais são livres para que nos respeitassem? Ou não é o próprio Evangelho que ressoa “Salvação! Salvação! Vida eterna e perdão”? Ou não é a própria Palavra que diz que Deus quer que sejamos um, como Ele mesmo é?
E como ser “um” sem respeitar o próximo? Aliás, a Palavra diz AMAR ao próximo.
Não diz só isso, não! Diz assim, por meio das palavras do próprio Cristo: Amem ao próximo como eu, Jesus, amei vocês!
Ora! Não foi Jesus quem morreu por amor aos malfeitores? Não foi ele quem morreu para salvar os injustos [4]? E não diz a Palavra: não há um justo sequer, ninguém que seja aceitável diante de Deus [5]?
E, agora, nos devem respeito, a nós homossexuais, apenas porque a Constituição assim legisla?
Há algo errado!
O tópico está correto no que diz respeito à necessidade de nos manter fiéis à Palavra que condena a idolatria e a depravação das pessoas. Há, contudo, necessidade de entendermos que ser homossexual não é, necessariamente, ser o depravado condenado em Romanos 1:18-32. Não é ser um animal em busca incessante do coito, nem ser uma pessoa desenfreada que quer ter a prática sexual com todos que puder, embora, é verdade, muitos agem assim, contudo, esse comportamento nada tem a ver com a homossexualidade!
Tão pouco a homossexualidade está, hoje em dia, relacionada à idolatria como estava em Romanos 1:18-32. Lá em Romanos 1:18-32 havia um bacanal, uma orgia pública, uma oferenda sexual aos deuses, um culto à própria carnalidade.
É verdade, sim, queridos irmãos: nós gays não somos “eunucos”, não somos assexuais, e temos desejos sexuais (muitos!). Saibam, entretanto, que nossos desejos sexuais são tão fortes, tão frequentes, tão intensos quanto os de qualquer moço ou moça heterossexual cristão!
A menos que acreditem que a mocidade cristã heterossexual é depravada (porque tem desejos sexuais), não chamem os homossexuais cristãos de depravados! Se a mocidade heterossexual pode ser “santa”, contendo seus desejos como diz a doutrina anunciada na igreja, nós homossexuais também poderíamos!
A diferença, caros irmãos, é que a eles não é negado o casamento. Contudo, queridos, sobre nós – gays e lésbicas que tentam ou tentaram ser cristãos – é recomendado aos nossos pais e familiares, aos nossos amigos e amigas… que sequer compareçam ao casamento de qualquer gay, exceto se quiserem ir para o inferno conosco. É assim que termina o tópico 10, embora usando um singelo eufemismo para dizer isto.
Homossexualidade também é, queridos irmãos do ministério, afetividade, também é amor, também é querer se envolver com uma pessoa só e viver ao lado dela por toda a vida! A menos que chamem isso de depravação, entendam uma coisa: depravação sexual e homossexualidade nem sempre estão associadas, assim como a heterossexualidade não está, sempre, associada ao adultério (ainda que muitos heterossexuais sejam adúlteros!).
Se, porém, a homossexualidade cristã tende à “degradação moral” até entre aqueles que um dia tiveram princípios cristãos é, entre outros motivos, devido ao casamento homoafetivo não ser aceito em hipótese alguma entre os cristãos.
Sobre o tópico 10, eu não duvido que houve algum sentimento, por parte dos irmãos, de realmente dizer à irmandade da CCB: “respeitem, sim”; “amem, sim”; “não ajam como o mundo está agindo, com discriminação, não”; “segundo o que entendemos, os homossexuais estão fora da Palavra, mas respeitem os gays e as lésbicas e todos aqueles que não têm comportamento heterossexual, sim”…
É como eu já escrevi, me remetendo a uma frase de Paulo [6], e não consigo pensar de outra maneira: queridos irmãos do ministério, vocês têm zelo, mas sem muito entendimento.
Talvez realmente não seja do interesse de vocês, mas vocês, amados irmãos, precisam compreender a homossexualidade, sim! Precisam apascentar ovelhas homossexuais, sim! Precisam compreender cada moço e moça homossexual que um dia já desejou ser cristão. Precisam compreender cada pessoa homossexual que um dia já esteve na igreja querendo abraçar o Desejado, o Cristo prometido a todos e que, porém, dele continuam sendo afastados.
Pode até ter algum amor cristão enrustido na redação deste tópico 10, contudo, ainda precisam meditar muito no amor de Cristo e no quanto não compreendem a diversidade da criação de Deus, que fez tudo para Sua glória.
É como está escrito: “Eles têm zelo por vós, não como convém; mas querem excluir-vos, para que vós tenhais zelo por eles. É bom ser zeloso, mas sempre do bem […]”. (Gálatas 4:17,18).
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[3] Reunião Geral de Ensinamentos é uma reunião anual, realizada durante a semana do feriado da Paixão de Cristo. Nesta reunião agregam-se, na casa de oração do Brás/SP, irmãos anciães e diáconos do Brasil e do mundo todo a fim de tratarem de assuntos diversos, da parte espiritual e material da igreja. À irmandade são redigidos tópicos de ensinamentos de diferentes finalidades, desde recomendações comportamentais (como não usar véus com enfeites, não usar barba, não usar roupas com decotes ou indecorosas etc.), espiritual (maneira de se portar na Santa Ceia, buscar os dons, significado da Páscoa e da Santa Ceia), regimental (o que pode e como pode fazer durante os cultos, quando falar “amém”, quem pode recitar nas Reuniões de Jovens e Menores…) e material (sobre como destinar corretamente o dinheiro para manutenção dos prédios da igreja, sobre não construir igrejas suntuosas, sobre a necessidade de ensinar a irmandade a contribuir com o INSS etc.).
[4] 1 Pedro 3:18
[5] Salmos 14:3; Salmos 53:3; Romanos 3:10; etc.
[6] Romanos 10:2