#024: Gays, o pavor do inferno e o dom de línguas

Por muito tempo eu tive medo do inferno. Pavor. Enquanto criança nunca pensava sobre isso, mas, tão logo completei 12 anos, tive uma sequência de sonhos relativos ao fim do mundo apocalíptico que o inferno começou a me assombrar. Por isso, aos 12 anos fui batizado, pois, embora não compreendesse o Deus amor, tinha certeza de que eu não queria sofrer a danação eterna.

Depois, eu vivi 2 anos intensos, indo às visitas com mocidade, frequentando as RJM[1], orações na madrugada com meus cooperadores de jovens… Eu havia perdido o medo do inferno, e ainda não entendia o amor de Deus. Até então, eu não compreendia minha homoafetividade – que sempre esteve manifestada – e, muito menos, minha homossexualidade que começava a aflorar.

Contudo, por volta dos 14 anos – quando percebi que, de fato, minha atração não era àquela a que fui orientado, a “normal”, e quando minha sexualidade se manifestou mais intensamente – eu percebi que, sim, deveria temer o inferno. Passei a desacreditar da minha salvação. Toda vez que desejava homens[2], depois, eu caía aos prantos em oração e suplicava a Deus que não me condenasse, que não me deixasse ceder àquele sentimento.

Confesso que, nas minhas orações solitárias, sempre alcançava algum alento, algum conforto divino. Porém, como o sentimento homoafetivo é intrínseco, eu sempre retornava àquele estado de miséria espiritual: duvidava de que eu seria salvo, já que homossexual – ainda que não praticasse o ato em si, mentalmente o idealizava[3].

E isso foi um ciclo em minha vida: idealizava mentalmente situações de práticas homoafetivas, me achava indigno de ser salvo, caía em um desgosto profundo por não “agradar a Deus”[4], chorava aos pés de Deus rogando-lhe misericórdia e que me suportasse, encontrava consolo e sentia a virtude[5] e presença de Deus em mim, e logo idealizava práticas homoafetivas[6].

O que quero explicar é que eu só sentia a virtude quando me considerava um impuro, uma abominação, e chorava aos pés de Deus, clamando por sua misericórdia. Eu ainda temia o inferno e não entendia o amor de Deus por mim – ainda que, repetidas vezes, ele me dizia: Eu te amo.

Eu era muito fervoroso[7], chorava sempre na igreja, me alegrava e emocionava sentindo a presença de Deus, pois encontrava esse consolo de que eu seria salvo, sim, e as Palavras[8] me faziam compreender que Deus entendia minha condição natural e que me aceitava assim, como sou.

Em 2007, aos meus 19 anos, eu estava em uma RJM e senti a virtude muito fortemente. Na RJM da semana seguinte, Deus dizia: Semana passada você sentiu grandemente a virtude, e hoje você vai sentir ainda mais!

Confesso que eu não senti nada, definitivamente. Eu estava em paz e não senti a presença de Deus naquela RJM. Chegando em casa, porém, encontrei uma situação desagradável: uma pessoa estava possuída por um sentimento maligno e prestes a causar, mais uma vez, uma desgraça em nossa família.

Eu, então, comovido com a situação, comecei a chorar. Primeiro chorei de desespero, tentando evitar que minha irmã, ainda mocinha, percebesse aquela manifestação maligna, diabólica. Depois, comecei a chorar mais, mas um choro diferente, proveniente da alma, do coração. Foi quando eu comecei a falar em línguas[9] pela primeira vez. Eu falava em línguas e entendia algumas coisas que falava. Fisicamente eu era bem fraquinho, mas segurei aquele homem, que nos causava males emocionais, com tanta força que vi que não era minha. Falando em outra língua, eu o abracei e, depois de um tempo, ainda o abraçando e falando em línguas, aquele espírito contrário e maligno se ausentou. Houve paz.

Uma prima minha, que também estava em casa na ocasião e que há muito tempo não falava em línguas, depois, me abraçou e voltou a falar em línguas. Minha irmã, ao me abraçar, sentiu a visitação de Deus. Abraçado à minha mãe, que chegou depois e em grande desespero, anunciava-lhe em línguas e eu entendia a mensagem que eu lhe dizia.

Eu, gay, com medo e pavor do inferno, com dúvida da minha salvação (porque me sentia impuro por ser homossexual) recebi, naquele domingo, o dom de línguas e vi Deus fazer outras obras lindas.

Aquela força que recebi ao falar em línguas e sentir Deus bem de perto, durou alguns dias. Esqueci o pavor do inferno e tive paz por alguns dias. Depois disso, passei 9 meses sem falar em línguas novamente. Logo, o medo do inferno foi se manifestando. No fim daquele ano, em uma RJM, o cooperador de jovens durante a reunião, me apontou e disse a mim que abraçasse um moço, que era auxiliar de jovens junto comigo e que havia sido “selado”[10] com o dom de línguas fazia pouco tempo. Eu nunca gostei muito disso, confesso, mas o abracei e voltei a falar em línguas, pois senti a presença de Deus de maneira muito forte em mim.

A partir desse dia, eu falava em línguas mais constantemente. Agora, quando me sentia um verme, uma abominação, e orava a Deus, o consolo vinha com sua presença e com a manifestação do dom de línguas. E eu só manifestava esse dom quanto estava nesse estado espiritual de me achar indigno de salvação.

Alguns pensam que para falar em línguas tem que estar puro, ser santo e irrepreensível. Ou, ainda, que quem manifesta o dom de línguas está consagrado e perfeito diante de Deus. Minha experiência diz o contrário. Sempre que eu manifestei o dom de línguas (ou que eu sentia aquela paz e alívio espiritual) era no momento em que me percebia mais sujo, mais abominável, mais pecador.

De 2013 até 2015 eu fiquei sem manifestar o dom de línguas. Em 2015 manifestei poucas vezes, uma ou duas. Coincidentemente ou não, foi a época em que tive crises depressivas fortes e, também, a época em que eu estive mais distante de Deus – ainda que, semanalmente, eu ia à igreja mais de quatro vezes, pouco meditava nele e em seu amor.

Em 2016, um pouco antes de iniciar o blog, e quase que imediatamente após me entender e me aceitar gay, eu comecei a sentir a presença de Deus de uma maneira muito intensa e a todo o tempo. Aquela paz que eu sentia apenas por alguns instantes enquanto falava em línguas ou um pouco depois de haver falado – às vezes algumas horas, outras um ou dois dias –, passou a ser constante em minha vida. Aquele medo e pavor do inferno, de ser condenado por ser “imperfeito”, também se esvaneceram.

Eu passei a sentir aquelas virtudes – que eram momentâneas e apenas em situações de miséria espiritual, quando me sentia um verme – o tempo todo. Todo dia. Em situações inesperadas[11]. Fora da igreja. Eu deixei de me sentir um cão miserável e passei a me sentir amado por Deus. Isso trouxe-me uma enorme paz. Deu-me certeza de salvação, não por qualquer mérito meu[12], mas por exclusivo mérito de Cristo.

Hoje, eu falar em línguas não se faz tão necessário (ainda que acho uma linda manifestação), pois acredito que a finalidade deste dom, na minha vida, era me dar paz. Eu estou em paz em relação à minha salvação. Eu estou certo de que Cristo me salvou. Eu já não duvido do poder de Cristo para me salvar e o amo intensamente por fazer isso sem que eu mereça, sem que ninguém mereça.

Sim, gays falam em línguas, e são participantes de todos os dons do Espírito Santo. Quero, contudo, que saibam que nem todos falarão em línguas. E, ainda, que não falar em línguas não significa não ser selado com o Espírito. Todos que cremos em Cristo como nossa salvação somos selados pelo Espírito para nossa redenção!

Aos gays cristãos e a todos que estão com duras cargas, devido à incerteza de salvação, proponho que, em lugar de buscar este ou aquele dom, busquem a compreensão de que a salvação se recebe exclusivamente por meio do mérito de Cristo. Quando conseguirem entender isto, alcançarão uma paz e certeza de salvação que mal nenhuma chegará a tenda dos corações de vocês: estarão no reino de Deus, no “paraíso”, ainda nesta vida terrena!

Busquem os dons de Deus, sim, mas procurem aquele caminho mais excelente: o amor fraternal e incondicional como o de Cristo.

Texto escrito em resposta a um pedido anônimo que recebi no blog.

[1] Reunião de Jovens e Menores é uma reunião da Congregação Cristã no Brasil, geralmente realizada nos domingos de manhã, exclusiva às crianças e jovens.
[2] Um eufemismo para a prática da masturbação.
[3] Idem. Masturbação é um tabu.
[4] Ou seria “aos homens”?
[5] A virtude é a manifestação da presença de Deus dentro de si. Comumente, relacionada a uma emoção (choro, alegria etc.) e, ao meu entender, tem finalidade de animar, dar forças espirituais ou fazer crer estar ligado com Deus.
[6] Esse ciclo se perpetuou por 14 anos, fui liberto apenas aos 28 anos – quando, então, comecei a os textos do blog.
[7] Fervoroso é alguém que sente a presença de Deus facilmente, ao menos é nesse sentido que usei o termo.
[8] Palavra na Congregação Cristã no Brasil (CCB) é a exortação de uma passagem da Bíblia, o discurso dos pregadores, que entendemos ser inspirado por Deus – ao menos deveria ser.
[9] Falar em línguas ou o dom de línguas é uma manifestação do Espírito Santo que faz com que a pessoa, sem saber, fale em outras línguas. Em minha cidade, no interior de São Paulo, há um irmão indouto, sem estudo, e que recebeu o dom de línguas em inglês arcaico – entende-se o que ele fala. Não se trata apenas de sons inteligíveis como alguns pensam. Há de se considerar que, sim, há imitações desse dom, tanto na CCB como em outras denominações e que acabam por o banalizar. Há outras manifestações, como interpretar outras línguas, expulsar demônios, curar enfermidades…, mas a maior manifestação é o amor fraternal e incondicional.
[10] É comum dizermos “ser selado pelo Espírito Santo” para se referenciar a alguém que fala em línguas. Ser selado, entretanto, é algo mais amplo e todo o cristão, todo crente em Deus, é selado (ainda que não fale em línguas).
[11] Como descrevi no texto 21 do blog http://www.tbsoucristao.blogspot.com
[12]Entenda, ninguém merece, nem nunca merecerá, o “céu”. O estado de paz que alcança quem entra no reino de Deus não é por nenhum mérito, mas por graça. É um favor, porque ninguém merecia isso. Cada um de nós somos ruins o suficiente para entrarmos no “céu”, mas somos justificados por Cristo, que é justo e justificador. Nenhum esforço próprio nosso pode nos colocar no “céu” e é por isso que precisamos entender e aceitar que o mérito é de Cristo. Isso não significa que podemos “deitar e rolar” no que é imoral (como desafetos, inimizades, porfias, malignidades e outros frutos do desamor), mas que quando pecarmos teremos um advogado que intercede por nós e ao nosso favor: Cristo. Se dissermos que não pecamos, tornamos Cristo mentiroso – e nos fazemos hipócritas.

Tags: LGBT, lésbica, gays, homossexual, homossexualidade, cristão, crente, CCB

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