As luzes piscam, piscam. A música ruim toca na casa alheia e é impossível não escutá-la. Não há para onde fugir. É necessário sorrir mesmo ouvindo “aleluias” àquele discurso que diz: acabarei com a ideologia de gênero (sic); lutarei pela família tradicional (sic).
Lembranças e memórias também assombram. Há tempos que não chorava assim, de tristeza ou de espanto. Ódio! Raiva? Rancor! Fúria? Desespero?
Incerto é o que se passava no turbilhão de pensamentos. Memórias de tudo o que já se acreditou e que hoje não faz sentido algum. Regras, regras. Mandamentos sobre mandamentos. Sem lógica.
Dois pesos. Duas medidas. Não case com moça! – ouviu-se certa vez. Outra: vou preparar o seu casamento. E ainda uma: você faz o Ministério refletir com seus bons argumentos, precisa se casar para fazer parte dele.
Ah! Eu só quero nunca mais vincular meu nome, minha identidade, minha essência ao que pensam.
Discriminam em nome do divino. Legislam em prol de um reino que não compreendem, pondo para fora em vez de a ele agregar. Por quê? Apenas porque não toleram!
Hipócritas! – disse Jesus aos religiosos fariseus que examinavam as Escrituras acreditando que nelas havia a vida, mas que, quando a própria vida a que buscavam se manifestou, a açoitaram e crucificaram. [1]
Examinem. Examinem. Vocês também acreditam ter nela a vida, a vida eterna. Tem. Não há, no entanto, ninguém que entenda, ninguém que busque, ninguém que encontre [2]. Nem entram no reino nem permitem que outros entrem [3]. Têm zelo, é verdade. Sincero, por sinal. Sem nenhum entendimento, no entanto [4]. Coam mosquitos, engolem camelos [5].
Dizem: não toquem nisso, não provem aquilo, não manuseiem aquele outro [6]. Se questionados sobre o porquê, eloquentemente dizem: porque está escrito. Se lhes é dito “mas também está escrito assim e assim” dizem: torcem as escrituras para a própria perdição [7]. Verdade, distorcem-na para própria perdição. Não entram nem permitem que outros entrem no reino de paz. De paz. Paz!
Legislam em nome do divino. Regras que aparentam sabedoria, devoção, controle da carne, santificação – ao que entendem por santificação. Regras que satisfazem apenas a presunção humana [6] de bater no peito e dizer: eu mereço o céu porque não faço isso nem aquele outro. Ou em uma modesta “humildade”: eu não mereço o céu, é verdade, mas ao menos sou melhor do que estes que fazem abominações [8]. Sexuais, notadamente. Ódio, violência, desavença, pelejas, porfias, desafetos… são todos divinamente tolerados, registram em seu âmago.
Também é o mesmo que dizer: eu mereço que Cristo seja esbofeteado por mim, porque sou bom, sou justo, não pratico isso nem isso, veja Jesus, sou digno de que sofras por mim, pois sigo todas essas regras que disseram ser necessárias para aparentar santidade.
Amem-se uns aos outros como eu – Jesus – amei vocês [9]. Ora, convenhamos, não fazer isso, nem aquilo é muito mais fácil. Dirão: Eu amo a Deus porque me privo de muitas coisas, ainda que não tolero a muitos “próximos”. Se não ama ao irmão a que vê, como amarás ao Deus invisível? Mentiroso! [10]
Acharás fé em algum coração quando retornares, Jesus? [11] Amor fraterno e misericórdia certamente bem pouco.
Perdoa-nos e não nos impute os pecados, pois estamos cegos e não sabemos o que fazemos acreditando estar a teu serviço. Como Pedro – no ímpeto carnal e na ignorância do teu reino – disse que tu não morrerias [12], dizem que tu também não deves salvar a muitos. Segundo as regras humanas, deves salvar apenas alguns poucos que são “firmes e fiéis” aos preceitos, ainda que não ao amor cristão.
Tu ainda és refúgio e refrigério, enorme árvore na qual as aves do céu se amontoam e acham descanso [13]. És, certamente. No entanto, talvez não nos lugares em que se diz estarem reunidos em teu nome.
Fácil criticá-los. Nem tanto, mas ao menos possível. Resta-me, contudo, não esquecer de que se minha “justiça” não exceder a dos “escribas e fariseus” serei privado do reino dos céus [14].
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[2] Salmos 14:1-3; 53:01 e Romanos 3:10-12
[3] Mateus 23:13
[4] Romanos 10:12
[5] Mateus 23:24
[6] Colossenses 2:21-23
[7] 2 Pedro 3:16
[8] Lucas 18:9-14
[9] João 5:12; 13:34
[10] 1 João 4:20
[11] Lucas 18:8
[12] Mateus 16:22-23
[13] Mateus 13:32 e Lucas 13:19
Que texto! Lindas reflexões. Que Deus nos ajude a não ser mais um dentre os hipócritas e querer pautar, segundo uma egoísta e errada visão, a obra redentora de Jesus Cristo.
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