#042: Carta-resposta à Circular “Homossexualidade e Ideologia de Gênero [sic] à luz da palavra de Deus”

Meu amor, recebi sua última carta[1] já há quase três meses, e não pude te responder sem sentir cada uma de suas palavras e relembrar tudo que passamos juntos.

Eu te amo desde minha infância, crescemos juntos e valorizamos tanto tudo o que tínhamos e tudo o que éramos um para o outro.

Percebi que você respondeu minhas últimas cartas, veladamente, como se quisesse quebrar o silêncio ou como se percebesse que muitos tomam partido meu agora.

É verdade, nós nos amamos, mas cada vez mais percebo o quanto você usa os fatos a seu favor apenas, e o quanto você nega que eu existo.

Você me diz: “os vínculos de amor são estreitados pelo bom convívio… por pessoas unidas por relações de afeto e de sangue”. Fala-me isto como se apenas o afeto não fosse suficiente para estreitar o amor, como se apenas em relações “de sangue” houvesse o amor. Como se apenas entre um pai e um filho, gerado de suas entranhas, pudesse haver amor, afeto e paternidade. Esquece, porém, que nosso próprio Amado foi adotado e cresceu sem esse vínculo sanguíneo com seu pai terreno. Ignora que há tantos e tantos exemplos de desamor entre famílias, quer do livro sagrado quer da atualidade! Se quisesse me amar de fato, poderia conhecer tantos que hoje eu conheço e que são muito mais amados em seus laços não consanguíneos do que em seus lares de origem.

Aliás, muitos “afetos de sangue” são desfeitos por você, minha amada, pois insistentemente você incita pais a não demonstrarem quaisquer carinhos e, menos ainda, aceitação por seus filhos “de sangue” que se desviam dos trilhos ditados por você.

Amada minha, você não cessa e me escreve que “o modelo patriarcal estabelecido por Deus… é a melhor organização para o ser humano”; mais uma vez, olha apenas para si e quer fazer-me acreditar que o modelo patriarcal é o modelo que hoje tu pregas como válido, como se aquele modelo patriarcal bíblico não fosse, hoje em dia, horroroso aos teus próprios olhos: homens com direito a mais de uma esposa, irmão sendo obrigado a casar-se com a cunhada ou sobrinha viúvas…

Você me afirma “resultante das uniões conjugais é que foram gerados os povos… tendo em vista que pessoas do mesmo sexo não podem gerar filhos…” – no que há verdades, mas me parece que você vive em uma fantasia. Sabendo tudo o que sei sobre você, minha amada, e o quanto você ignora atrocidades de personagens para criar seus heróis platônicos, presumo que você queira me fazer concordar que a humanidade foi constituída por uniões conjugais apenas, um homem e uma mulher, esposo e esposa legítimos, com seus lindos filhos disciplinados, com seu matrimônio impecável e patriarcal.

Digo que é uma fantasia, pois o próprio nosso Amado teve sua geração cheio de escape desse modelo, dito divino, de maneira que sua ascendência inclui filho de prostituta, filho de nora com sogro, filho de adultério de rei idolatrado… [2]

É verdade, contudo, e fato inegável também, que pessoas do mesmo sexo não gerem filhos. Isso, todavia, não deveria ser argumento para dizer que não possam ser amadas do divino Amor. Se você acredita de fato que sexo seja abençoado apenas para gerar filhos, deveria instar seus fiéis seguidores heterossexuais a isto também.

Ao mesmo tempo que pessoas do mesmo sexo não geram filhos (tanto como os e as estéreis tão citadas e, às vezes, justificadas no livro sagrado), pessoas do mesmo sexo também não abandonam filhos, antes, muitos desejam até adotar filhos rejeitados por um pai e por uma mãe, por exemplo. Também são um pai e uma mãe crentes que, muitas vezes, são ardilosamente incitados a uma rejeição de sua geração sanguínea caso seus filhos homossexuais assumam ser quem são.

Não comentarei sobre sua incoerência e sua incapacidade de perceber que a própria história de sua constituição, no Amado, tem base em uma adoção; pois não éramos filhos legítimos, mas fomos adotados por laços não de “sangue”, não de “direito legítimo”, mas de afeto, de graça; e essa adoção é de um Pai só, sem a figura de uma Mãe. Fomos adotados por um Pai, a ilustração da família perfeita não tem a figura da mãe e não é por laços legítimos “de sangue”.

Por homossexuais e LGBTIA+ sofrerem essa rejeição, tal como as estéreis dos tempos bíblicos, em que gerar era ainda mais esperado, por sofrermos essa rejeição sua, amada minha, e de nossos familiares (incitados por você), nós aprendemos a amar as pessoas mesmo quando não temos laços “de sangue” com elas! Acredito que seja isso que te irrite tanto, formosa minha, mas você precisa aceitar que nosso amor, gerado por ou pela nossa homoafetividade, é tão autêntico quanto aquele dos que amam porque estão ligados por um seio familiar “de sangue”. Se não mais, amamos igualmente aos que amam por estarem estreitados em laços sanguíneos! Tal como o símbolo da Adoção e da Graça, somos capazes de adotar e amar filhos, ainda que não tenham sido gerados “das nossas entranhas”.

Depois disso, você se confunde completamente. Levou sua fantasia para um nível de ficção científica. É verdade, de alguma maneira, que “homens e mulheres têm informações genéticas diferentes em seus cromossomos” e isso não determina qualquer tipo de afetividade, seja heteroafetividade (como em sua ficção você supôs) ou homoafetividade. Você indicou que cromossomos definiriam a heteroafetividade, e nunca a homoafetividade; isso é completamente sem sentido! Essa diferença cromossômica, no pouco conhecimento genético que possuo, determina os órgãos sexuais; agora, pasme, há uma diversidade enorme de gênero, maior do que essa que você dicotomiza: você deveria pesquisar sobre as pessoas intersexuais!

Você diz que “inclinações homoafetivas são enaltecidas pela mídia” e que, contudo, aqueles que te seguem não devem entender a homoafetividade como “experiência saudável”. É bem do seu feitio ignorar as experiências não saudáveis que você mesma me proporcionou, dileta minha.  E não só a mim, e não só àqueles como eu, homossexuais. Mesmo casais heterossexuais, que você diz valorizar, passam por tantas experiências não saudáveis, traumáticas, geradas por você e a fim de manterem as aparências ditadas por você, e você ignora isso.

Já conversamos sobre o fato de Romanos 1 não se tratar de mim[3]. Há desvirtudes demais lá que jamais, de maneira alguma e em momento algum, jamais poderiam ser associadas a mim. Não vou me alongar nisso, pois você se recusa olhar para frente ou para os lados, se recusa a pensar como um todo, se recusa a reconhecer a diversidade da criação divina, se recusa a olhar qualquer um que não seja si mesma.

Também é uma ilusão sua acreditar que os heterossexuais se reprimam tanto sexualmente; muito, sim, infelizmente para eles. Porém, pior do que isso, é colocar esse suposto peso deles em nós e dizer que “assim como os heterossexuais se reprimem, os homossexuais também devem se reprimir”. Heterossexuais não se reprimem, tanto que com 16 anos já estão insanamente na busca de um casamento para poder se satisfazerem sexualmente (não só por isso, claro, mas principalmente). Eles mortificam seus corpos ou antecipam uma decisão que deveriam tomar com mais maturidade? E, ainda que isso fosse uma mortificação de fato, como se compara um heterossexual viver os 18 primeiros anos da vida sem sexo e com afetividade (pois podem namorar e se sentirem amados por um/uma moço/moça) com sua interpretação de que o homossexual deve viver a vida toda sem afetividade alguma (para além da sexualidade)?

Dois pesos, duas medidas, abominação é!

Você me diz que “toda tentação tem um limite… respeitando a capacidade de resistência de cada fiel”, possivelmente citando o verso que fala algo como “não há tentação sem que haja um escape”. Respeito sua crença, mas não se trata do divino e sim de você se colocar como o próprio divino e pesar nossos atos, estreitar nossos limites enquanto os dos demais são alargados.

Coam um mosquito, e engolem camelos inteiros!

Mais versos e versos você cita a mim, como se eu não os conhecesse. Como se eu já não tivesse falado deles para você; como se cada um deles estivesse no melhor contexto interpretativo, só porque tal contexto está dentro das suas limitações cognitivas! Não falarei deles novamente.

Li e reli, às vezes considerando um avanço, algo positivo; li e reli e apreciei seu incentivo aos seus fieis seguidores não praticarem homofobia nem desprezo de homossexual algum. Pareceu-me bom, afinal, você sequer conseguiria dizer isso antigamente. É triste, porém, que antes de dizer isso, você me qualificou, na mesma carta: como incapaz de ter afeto genuíno; como sem caráter ou como incapaz de educar filhos que tenham caráter, moral, emocional, psicológico e social desenvolvidos; como não natural; como não saudáveis; como desenfreado; como portador de uma desordem espiritual…

Obrigado, dileta minha e pomba minha, por incentivar os teus a não me odiarem. Muito obrigado! É o mínimo que você deveria fazer, mas te agradeço. Agradeço-te também por reafirmar a si mesma como um abrigo para todos e para todas sem distinção, apesar de você me distinguir com os adjetivos que destaquei há pouco.

Conhecendo-te bem, e esclarecido tudo o que pensa sobre mim, compreendo cada vez mais que, em verdade, em verdade, seu “amor” é obsessão, é paixão que ofusca a razão, é sentimento que te incapacita aos laços afetivos profundos, é ego extremo que lhe impede aprender com a experiência.

Preciso te dizer, no entanto, que eu te amo, mas…

Adeus.

Com amor,

um teu filho “amado”.,

Resposta à circular da CCB; Homossexualidade e Ideologia de Gênero [sic] à luz da palavra de Deus?

[1] Esse texto refere-se à carta circular 151, endereçada a todos os membros da Congregação Cristã no Brasil e disponibilizada no site oficial desta instituição religiosa. A carta pode ser baixada a seguir.

Tags: Gay, LGBTIA, Lésbica, Homossexualidade, Transexual, Intersexual, CCB.

6 comentários sobre “#042: Carta-resposta à Circular “Homossexualidade e Ideologia de Gênero [sic] à luz da palavra de Deus”

  1. Infelizmente a CCB não evoluirá para aceitar quem somos. Algumas filhas (dissidentes) como a @ccnoficial estão a frente no que diz respeito a aceitação e a liberdade para servir a Deus livres de julgamentos, preconceitos e principalmente de diferenciação do povo por orientação sexual.
    O amor de Deus é para todos, tolice é de quem tenta segregar esse amor.

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  2. oque mais admiro nisso tudo e que os irmaos doministerio falam tanto contra quem sao homoxessuais e oram tanto a Deus para apresentar irmao ao ministerio que hj estao colocando homosexxuais para cooperadores, musicos auxiliares de jovens e ate para traduçao de libras nas ccb falo e provo, me revolto e da vontade de abrir a boca vomitar tudo isso e muito mais, sei que estarei errado pq vou ter que citar nomes e mostrar fotos declaraçoes , ae me pergunto cade Deus que eles pregam contra os homossexuais e essemesmo Deus confirma os tais (mesmo sem saberem) para o ministerio????? fica minha indignaçao,,,,,

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    • É complicado mesmo. Na verdade, LGBTI+ estão em toda parte, mas na igreja vivemos um longo período reprimidos e, por isso, assumimos os mais diversos cargos enquanto conseguimos negar quem somos. Eles sabem que existimos, mas preferem negar e fingir viver uma realidade à parte.

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  3. Não quero falar sobre exclusão ou injustiças com a comunidade Lgbtq+ sei que há muito sofrimento envolvido mas o mundo de hoje está em uma guerra sobre a liberdade de pensamento, não sou da CCB minha avó foi mas temos tantas religiões no mundo com tantas formas diferentes de pensar…Somente acho que cada igreja tem suas crenças e doutrinas e quem as segue compartilha, não tem porquê ficar invadindo o espaço do “outro” para denunciar ou pregar suas crenças, pois o “outro” nao vai mudar…o mesmo é o outro entrar no seu espaço para denunciar para o publico dele as suas crenças pois você permanecerá fiel as suas doutrinas…deixa cada um seguir dentro de seu espaço o que acredita…cada pessoa tem o direito de pensar, sentir e seguir o que acredita…isso é respeito ao outro…se aquilo te faz mal saia e não olhe para trás …é muita discussão fazendo um pensamento ter que ser aceito sendo que as pessoas são livres…o mundo tem se tornado chato de viver porque se um não concorda com algo é preconceito e nem é…mas apenas o que cada um acredita como certo o que não justifica a exclusão da comunidade na sociedade o amor e respeito deve ser igual em ambas as partes…me deparei com seu artigo e coloquei essa questão sobre liberdade de crenças..virou uma guerra as pessoas pegarem o pensamento do outro e fazer disso uma batalha dentro do seu grupo…apenas siga e dê espaço para o outro…quem julga é apenas Deus e o amor Dele é igual para todos.

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    • Valorizo sua opinião apesar de discordar dela. Entendo que a discussão a que se trata neste blog é pertinente, principalmente quando se reconhece a realidade da igreja: muitos jovens que nascem e crescem na igreja e acabam ficando reduzidos a ela sem, sequer, conseguirem reconhecer essa perspectiva que vc apresenta, de que podem sair da igreja. A própria igreja trabalha a fim de dizer o contrário, de que não podem sair, de que quem sai tem uma vida “desgraçada” e que quem sai, se arrepende amargamente e não pode voltar. O que vc propõe teria sentido se a igreja fosse como um bar ou cinema: vai quem quer. Na igreja isso não acontece! As crianças nascem e crescem na igreja e quando se reconhecem LGBTIA+ precisam de espaços como o desse blog para terem a percepção justamente de que podem sair da igreja.
      Obrigado pela interação aqui. Abraço

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